terça-feira, 25 de março de 2008

Encontros Normais – Parte final


Apontando o dedo na cara do senhor que a barrou na porta do saguão aonde ela deveria estar proferindo a palestra, ela mostra toda a imponência de anos de estudo dedicados e trabalho árduo. O senhor fica acuado perante a argumentação autoritária, mas não cede a pressão e não a deixa passar, pois está cumprindo o que a sua função lhe impõe. Ela fica sem paciência e usa o celular. Engraçado, a minha observação é simplesmente um fetiche, pois que deveria fazer o papel de interventor seria eu, tanto que a ligação que ela faz é exatamente para mim. Não atendo. Limito-me a aproximação e com um gesto o senhor a deixa passar. Ela pra mim, sorri amarelo e segue em direção ao local no qual está sendo aguardada. No caminho ela não dirige a palavra. Em outras épocas ficaria sentido com a atitude. Hoje sou apenas o coordenador de um evento cuja fala dela é mais aguardada desde quando começou o evento. Realmente um lugar de prestígio. E ainda mais na atual conjuntura com a valorização de idéias vinda de pessoas como ela. Ela está pronta para iniciar a palestra. O meu papel é anunciá-la. Conto para a platéia toda a sua trajetória e seu currículo respeitável. Ela toma a palavra e eu me limito a sentar na primeira cadeira. O domínio do conteúdo realmente impressiona. Olho a platéia e os olhos atentos são mais impressionantes. Ela me olha poucas vezes, mantendo o ar de formalidade como se tudo fosse sempre assim. Passados o tempo previsto, perguntas respondidas e aplausos merecidos, acompanho-a até a sala de estar para alimentação e um relaxamento de idéias. Durante o caminho arrisco dizer um parabéns e ela agradece. Na sala de estar ela senta e delicadamente toma uma xícara de chá. Ela é bela e preta. Bela mulher preta. Nunca poderia esquecer as nuances de seu rosto e sua bela boca carnuda. Nunca poderia esquecer as noites de sexo e discussões sobre os contos de Alice Walker. Nunca poderia esquecer os choros e os momentos depressivos nos quais escrevia poemas para alegrá-la. Nunca esqueci e nunca entendi o porquê dela ter me ignorado. Nunca me deu explicações plausíveis. Um nada a declarar foi a frase derradeira. Como eu a amei. Quantas expectativas criei com relação a nossa relação. Ela me olha atentamente. Diz que continuo fofo. Diz que continuando falando pouco. Diz que sou um filha da puta por não ter intervindo há mais tempo quando ela estava no embate com o senhor na porta do saguão. Eu sorrio. Ela tinha me percebido. Ela me diz não perdi meu ar sarcástico. Rimos com antes. Rimos juntos como antes. Ela me pergunta se ainda pluralizo as mulheres pretas. Eu digo que não pluralizo mais as mulheres pretas desde que me apaixonei por uma. Ela fica sem graça e diz que precisa atender as pessoas. As pessoas são importantes para o trabalho dela. Ela vai atendê-las e tomo um gole de café, pois não curto chá. Saio sem ser percebido e peço para ocuparem meu lugar enquanto vou resolver uns assuntos. Não sei se ela sentirá a minha falta e também não importa. Foi bom vê-la. Foi bom senti-la aparentemente bem, mas também é bom eu me preservar. A construção dos valores se pauta em tentarmos ser sempre melhores depois de cada momento frustrante. Não tenho mais nada para oferecê-la e nem ela tem mais nada para oferecer para mim. Isso é fato!

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